[Este é o artigo que mereceu uma resposta de Wanderley Navarro que, por sua vez, recebeu minha réplica. Ele foi originalmente publicado em Liberal Space em São Paulo, 20 de março de 2009.]
Já comentei várias vezes aqui que Karl Popper acredita na existência de verdades absolutas.
Segundo o meu entendimento de Popper, isso significa que, se um enunciado é verdadeiro, então é verdadeiro independentemente de considerações de tempo e espaço: sempre foi verdadeiro, é verdadeiro agora e será verdadeiro para sempre – aqui ou em qualquer outro lugar. Ou seja, a verdade, no caso, será absoluta, não relativa.
Para que essa posição seja plausível é necessário que os enunciados sejam totalmente determinados, sem pronomes ou termos contextuais. Ou seja: o que poderia eventualmente relativizar o enunciado precisa se tornar parte do próprio enunciado.
Por exemplo.
O enunciado “Chove agora” sofre de mais de um problema de indeterminação. Quando é agora? Não se diz. E onde chove agora? Não se diz. Ainda se pode questionar se o sentido de “chove” é claro: chover é apenas chover forte ou uma garoinha conta como chuva? Consequentemente, esse enunciado, na forma em que se encontra, nunca vai poder ser uma verdade absoluta.
Por outro lado, o enunciado “Chove fortemente no dia 20 de março de 2009, às 14h, hora local, em frente ao edifício situado na Av. Paulista 2000, em São Paulo, Brasil” é completamente determinado. Se esse enunciado é verdadeiro, ele é verdadeiro agora e será verdadeiro para sempre – em qualquer lugar do planeta. E, se alguém o tivesse formulado dois mil anos atrás na Grécia, ele teria sido verdadeiro então, também. (Algo improvável, porque São Paulo nem existia então – fazendo com que fosse difícil fazer afirmações acerca da cidade).
O que chamamos de verdade, para Popper, é uma relação de correspondência entre um enunciado e um fato da realidade. O enunciado x é verdadeiro se, e somente se, aquilo que x descreve for o caso. Em outras palavras, e particularizando, o enunciado “a neve é branca” é verdadeiro se, e somente se, a neve for branca.
Elementar, mas de profundo significado.
Para Popper, dado esse entendimento de verdade, é inquestionável que nós, cedo ou tarde, formularemos enunciados verdadeiros acerca da realidade – e esses enunciados, desde que devidamente determinados, serão verdades absolutas, não relativas a tempo e espaço.
Paralelamente à sua confiança na existência de verdades aboslutas, porém, há, em Popper, uma profunda desconfiança de nossa capacidade de saber se um determinado enunciado é de fato verdadeiro. A verdade existe, para ele, no plano da ontologia – o conhecimento, no plano da epistemologia. E aqui somos profundamente falíveis.
Assim sendo, Popper acredita na existência de verdades absolutas mas desconfia da pretensão de qualquer enunciado que aspire a essa condição – até mesmo, em princípio, daqueles formulados por ele próprio.
Aí está a base do liberalismo de Popper: ele questiona qualquer ideário (ideologia, doutrina religiosa ou política ou mesmo teoria científica) que se pretenda verdadeiro. Nossos enunciados acerca do mundo ou de qualquer outra coisa são, para ele, nada mais do que conjeturas, que podem ser refutadas a qualquer momento por fatos ou argumentos (a maoria deles é, cedo ou tarde). E vão permanecer conjeturas, hipóteses, para sempre. Uma hipótese nunca se transforma em “lei da natureza”.
Quem tem um ponto de vista assim não pode, em princípio, ser absolutista no plano do conhecimento – ou dogmático. O dogmático é aquele que se acredita de posse da verdade. E o dogmático é inevitavelmente intolerante. Se o que (por exemplo) a Bíblia diz é verdadeiro, por que tolerar a evidente falsidade de quem questiona ou contesta o que a Bíblia diz, ou diverge do que ali está escrito? Fogueira para ele. Popper, por outro lado, se vê como alguém que está constantemente em busca da verdade – sem, contudo, jamais poder ter certeza de que a encontrou… Assim ele, ou alguém que siga seu ponto de vista, nunca pode ser dogmático e intolerante.
O não-dogmatismo e a tolerância vêm juntos: eles decorrem de um mesmo fator: o fato de que eu posso estar errado e de que aquele de quem eu discordo ou a quem critico pode estar certo…
Quando me sinto tentado a atribuir o caráter de verdades absolutas às minhas próprias convicções e a ser intolerante das convicções dos outros, eu devo sempre me lembrar: e se os outros estiverem certos, e eu errado? Eu gostaria que eles fossem dogmáticos e intolerantes com meus pontos de vista?
A busca da verdade se dá, segundo Popper, no exame sério, rigoroso e imparcial de pontos de vista que conflitam com os nossos. É neles que vamos eventualmente ser capazes de identificar pontos fracos em nossas formulações, em nossos argumentos, em nossas evidências – e, assim, conseguir avançar um pouco mais na direção da verdade. Quando a gente rejeita o que antes considerava verdadeiro, faz um progresso significativo na direção da verdade.
Originalmente escrito e publicado em São Paulo, 20 de março de 2009; transcrito aqui em Salto, 3 de Março de 2018.