Conteúdo
1. Preliminares
2. A Lição de Mill
3. A Lição de Hume
4. A Lição de Popper
5. A Lição de Sócrates
6. Considerações Finais
“I state my case, even though it is only part of the truth, and I would state it just the same if I knew it was false, because certain errors are stations on the road to truth.”
(Robert Musil)
1. Preliminares
Nasci em um lar de crentes. Meu pai era pastor presbiteriano conservador e minha mãe era, digamos, uma mulher de pastor típica daqueles tempos: submissa ao seu marido (como, de resto, até as mulheres casadas, mesmo que não com pastores, em geral eram). O país, naquela época, em 1943, vivia um período de ditadura – o Estado Novo de Getúlio (1937-1945). No país, a Igreja Católica Romana predominava. Os crentes (que hoje se chamam evangélicos) eram uma minoria quase desprezível. O Brasil era considerado o maior país católico do mundo. Supostamente 95% da população se dizia católica. Os restantes 5% acomodavam os crentes, as pessoas de outras religiões, e os ateus e sem religião.
Felizmente, o governo de Getúlio não era de perseguir os cristãos, nem mesmo os que estavam na minoria. Em 1964 tivemos um período de governo militar que, no final de 1968 se tornou claramente ditatorial. Mas era claramente em favor da religião. O penúltimo presidente General, o Geisel, era até crente luterano. O inimigo do governo eram os comunistas, não os cristãos, nem aqueles minoritários. De 1967 a 1974 vivi nos Estados Unidos, o país que inventou esse negócio de separação entre Estado e Religião. Mas lá nunca houve um presidente que ousasse se dizer não cristão – e a religião tem ampla liberdade.
Assim, nunca vivi numa sociedade em que os cidadãos são perseguidos pelo governo por causa da religião que possuem ou por não possuírem religião. Nunca vi cristão ser perseguido por governo, mesmo tendo vivido durante duas ditaduras aqui no Brasil.
Mas vivi em contextos em que cristãos perseguem outros cristãos, mesmo de sua própria igreja ou denominação, por não terem as mesmas crenças teológicas, por não terem os mesmos princípios morais, por se comportarem de forma divergente, crendo ou agindo de forma que a maioria considerava errada, ou deixando de crer ou de agir da forma que a maioria considerava certa.
E não estou falando do tempo em que católicos perseguiam os crentes, em especial nas cidadezinhas do interior. Estou falando do tempo em que crentes perseguem crentes, presbiterianos perseguem presbiterianos da mesma denominação.
Daqui para frente vou me ater à discussão dentro do arraial presbiteriano.
Alguns podem achar que “perseguir” é um termo muito forte. Mas não é. Foi numa cidade chamada de a Roma dos Evangélicos, ou, pelo menos, a Roma dos Presbiterianos, que Miguel Serveto e Sebastião Castelio foram severamente perseguidos por não aceitarem a “ortodoxia calvinista”. Serveto foi executado na fogueira de fogo lento (isto é, brutalmente assassinado da forma mais cruel), no ano de 1553, porque algumas de suas crenças divergiam das crenças da maioria, dominada por Calvino. Castelio protestou, e só não morreu também porque foi mais rápido e fugiu. Então “perseguir” não é um termo muito forte, não.
Ah, mas isso foi no século 16, alguns podem dizer: hoje, isso não acontece mais. É verdade. Mas o “odium theologicum” que existia no século 16 ainda impede pessoas que pensam, creem, ou conduzem sua vida de forma divergente possam congregar de maneira pacífica numa mesma igreja local, ou numa mesma denominação.
Em 1903 a Igreja Presbiteriana do Brasil, até então una (embora implantada e regida por missionários oriundos de uma Igreja Presbiteriana dividida, a dos Estados Unidos), se desuniu e dividiu. Homens sérios e dedicados à sua igreja concluíram que não podiam viver, congregar, adorar juntos – por causa, literalmente, de besteiras (se a igreja deveria continuar a ser tutelada pelos missionários americanos, se crente pode ser maçom, e outras miudezas). A separação da Igreja Presbiteriana Independente não se deu porque os presbiterianos “dependentes” não acreditavam na Divindade de Cristo, ou na Trindade, ou da eficácia da morte de Cristo na cruz para o perdão dos pecados e a redenção das pessoas. E até hoje, em que a questão da maçonaria é bem mais insignificante do que no fim do século 19, princípio do século 20, e em que os presbiterianos “dependentes” se livraram da dependência da igreja presbiteriana americana (das igrejas presbiterianas americanas), continuam divididos e separados, fustigando uns aos outros por besteiras mais insignificantes ainda – ou, então, por medo de que, se as duas denominações se reunificarem, faltará cargo e “boquinha” para um monte de gente que hoje tem…
Entre 1938 e 1943 (ano em que nasci) a Igreja Presbiteriana Independente sofreu os efeitos do remédio que havia adotado em 1903, dividindo-se duas vezes, e produzindo a Igreja Presbiteriana Conservadora, de um lado, e a Igreja Cristã, dos intelectuais mais liberais, do outro. O pomo da discórdia? “As Penas Eternas” … Aqueles que Deus escolher (na verdade, escolheu, antes da criação do mundo) mandar para o Inferno, vão ficar “para sempre, e sempre” num lago fervente de enxofre, ou Deus, em sua magnanimidade, os extinguirá (porque no Céu a sua justiça o impedirá de, perdoando-os, deixá-los entrar). A Igreja Presbiteriana Independente que sobrou ficou sendo o “centrão teológico” daquela época, nem tão conservadora quanto os que saíram por um lado, nem tão liberal quanto os que saíram pelo outro. Mas qualquer hora ela implode de novo, por questões teológicas (menos provável) ou político-ideológicas.
A Igreja Presbiteriana do Brasil dividiu-se mais vezes, produzindo filhotes, entre os quais a Igreja Presbiteriana Unida (não sei exatamente quem ela uniu) é uma delas. Há vários ramos presbiterianos hoje, todos formados por gente que não conseguiu conviver com gente que pensava, cria ou agia de forma divergente.
Eu estive, como dizia o título de um livrinho bacana que circula entre alguns círculos presbiterianos, “no olho do furacão” de uma das crises da Igreja Presbiteriana do Brasil: a que estourou em 1966. Na sequência dela, houve, sim, muita perseguição, muita defenestração, muito expurgo, muito dedodurismo (até político, gente que foi entregue ao governo militar para receber fora da igreja a punição mais séria, em alguns casos a execução sumária, que a igreja não tinha coragem de impor, como o fez no século 16).
Foi nesse contexto que comecei a aprender minhas lições. Os nomes, no título, estão em ordem cronológica da vida das pessoas. Mas as lições que aprendi, não vieram nessa ordem. A minha primeira lição veio de John Stuart Mill (1806-1873).
2. A Lição de Mill
O século 19 nas Ilhas Britânicas foi um período fascinante – quase tão fascinante como o século 18, que teve David Hume, Adam Smith, Edmund Burke, nenhum dos três inglês: os dois primeiros, escoceses, o terceiro, irlandês.
No século 19 a efervescência intelectual, moral e política se deu mais no pedaço mais importante da ilha britânica principal, a Inglaterra. A igreja oficial, Anglicana, era estatal. Seu chefe maior era o rei, ou, no caso da maior parte do século 19, a rainha – Victoria, a que nos legou um conceito, o de vitoriano ou vitorianismo. No século 19, havia, naturalmente, conservadores anglicanos, mas um pedaço significativo de pessoas proeminentes deixou a Igreja Anglicana para voltar para a Igreja Católica. Havia gente radical, que em regra não quis saber de nenhuma igreja, e que era radical tanto teológica como politicamente. Mas o país que havia, através de John Locke, produzido as Cartas sobre a Tolerância, e, com elas, influenciado a rebelião nas colônias britânicas da América no século 18, tinha um razoável nível de tolerância. A própria rainha, que definiu, com suas ideias, usos e costumes, o vitorianismo, tinha um comportamento pessoal meio exótico e uns relacionamentos (depois de se tornar viúva muito cedo) de fazer britânico levantar uma sobrancelha. Karl Marx escolheu viver nessa Inglaterra – e ele próprio, além de suas ideias políticas pouco ortodoxas, tinha um comportamento pessoal não acima de qualquer suspeita… Além do Socialismo Marxista, surgiu na Inglaterra o Socialismo Fabiano, mais maneiro. E havia o pessoal da literatura, sempre exótico. Leslie Stephen deu a tônica na área do ceticismo religioso. Sua filha, Virginia Woolf, escandalizou muita gente. Oscar Wilde e Lord Byron, então… Entre os nobres, ter amante, às vezes plural, era de rigueur.
John Stuart Mill era um liberal conservador, mas com algumas simpatias socialistas – ou social-democratas, como hoje se diz. Era solteirão, apaixonou-se por uma mulher casada, que por ele também se apaixonou, mas conviveram, segundo se afirma, platonicamente, até que o marido da mulher morreu. Daí se casaram, passado um período convencional de luto. E logo depois a mulher morreu, deixando a sua filha do primeiro casamento para cuidar de Mill. Exceto do aspecto que, para alguns, mais significa no casamento, e mesmo assim há quem duvide, a filha de Harriet Taylor acabou sendo a real mulher de John Stuart Mill. Até Friedrich (renomeado Frederick) von Hayek, Sir, por ordem da Rainha Elizabeth II, e Prêmio Nobel de Economia, por determinação dos suecos, escreveu um livro sobre a notável convivência de John Stuart Mill e Harriet Taylor. Encontra-se no volume 16 de Collected Works of F A Hayek, cujo “Founding Editor” foi meu querido e saudoso orientador de Doutorado, William Warren Bartley, III, e que tem o título de Hayek on Mill: The Mill-Taylor Friendship and Related Writings, editado por Sandra J. Peart (University of Chicago Press, Chicago, 2015 – Kindle Edition). [NOTA: Mill e Harriet Taylor viveram 21 anos de “intimate friendship”, “generally believed to be chaste”, segundo a Wikipedia, até que o marido dela morreu. Guardaram luto de dois anos (!) e se casaram. Sete anos depois, ela morreu. Helen Taylor, filha dela, cuidou de Mill de 1858, data da morte de sua mãe, até 1873, quando ele morreu. Quinze anos em que ela virtualmente mandou na vida dele, com autorização incondicional e expressa para rever e alterar o texto de seus artigos e livros. Há quem acredite que essa convivência também tenha sido casta. Apesar da improbabilidade, em especial pela idade, no segundo caso, e pelo conservadorismo dele, em ambos os casos, eu tenho cá sérias dúvidas sobre a castidade dos relacionamentos extraconjugais de Mill. Se foram, ele deve ser imediatamente proclamado o Rei dos Relacionamentos Platônicos.]
Em 18 de Abril de 1966 eu, então com verdes 22 anos, escrevi, em Editorial do jornal O CAOS em Revista, órgão oficial do Centro Acadêmico “Oito de Setembro” (CAOS) do Seminário Presbiteriano de Campinas, o seguinte:
“No número anterior, primeiro de nosso jornal, procuramos, em um artigo que teve um Sitz im Leben de todos conhecido, dizer algumas palavras sobre o livro de Jonas. Naquela ocasião dissemos que o livro tinha uma mensagem ainda hoje relevante, pois era ‘uma voz profética e uma permanente advertência contra tudo o que estreita e particulariza a religião, e contra todo exclusivismo religioso’. Nosso interesse hoje é assinalar a relevância e o oportunismo desta mensagem no contexto imediato em que nos encontramos, a saber, na vida da IPB [Igreja Presbiteriana do Brasil].
Vimos, no artiguete passado, que a mensagem de Jonas foi um brado de protesto contra o nacionalismo particularista dos judeus que se consideravam detentores únicos e exclusivos da divina graça, e que, assim fazendo, limitavam a ação de Deus à nação política Israel. Deus estava cerceado dentro dos limites políticos da nação. Qual a relação que isto pode ter com a IPB? A relação é que, ainda hoje há o grupo que se considera detentor exclusivo e único da graça divina, grupo este que, assim fazendo, procura limitar a ação de Deus, não a uma nação política, mas a um círculo ideológico, que procura cercear Deus, não dentro de limites políticos, mas de limites ideológicos.
Concretizamos: aqueles que, no seio da IPB, estão preocupados em tirar do seu caminho todos os que não concordarem em gênero, número e caso com os padrões rígidos de sua ‘ortodoxia’ superada estão praticando o mesmo tipo de exclusivismo religioso (senão pior) praticado pelos judeus aos quais foi dirigida a mensagem do livro de Jonas. Estas normas ‘ortodoxas’ têm se tornado os limites cerceadores da ação de Deus. Quem delas se afastar — dizem, ou se não dizem assim o entendem, pois suas atitudes o comprovam — afasta-se do próprio Deus, e então não é digno de permanecer na IPB. Precisa ser expurgado (palavra, por eles, estimadíssima!).
Vimos, contudo, no artigo passado, que quando o homem estabelece limites que particularizam e estreitam a órbita da ação de Deus o próprio Deus encontra um meio de arrasar com essas pretensões do coração humano. As obras do autor de Jonas e de Dêutero-Isaías são em Israel evidências típicas disto. Foi porque os israelitas não atentaram ao fato de que Deus queria quebrar (como de fato quebrou) essas barreiras particularizantes que foram por Ele rejeitados.
É com consciência desta verdade que levantamos a nossa voz em protesto contra a estreiteza de mente de alguns dentro da IPB para os quais até opinião é delito, para os quais a livre expressão do pensamento é causa suficiente para expurgo! Como é mais fácil lutar para manter as liberdades que já temos do que lutar para reconquistar as liberdades perdidas, O CAOS em Revista se dispõe, em suas páginas, a dar livre expressão ao pensamento dos alunos. O número presente é exemplo disto. Não podemos permitir que nos tolham a liberdade de termos os nossos próprios pensamentos e o livre direito de expressá-los. É esta a base da democracia. É esta a base do regime presbiteriano.
Em sua obra On Liberty, disponível em Utilitarianism, Liberty and Representative Government (New York: Dutton, 1910) John Stuart Mill faz notar, com toda razão, que silenciar a expressão de uma opinião [que seja] é roubar a raça humana, tanto a geração presente como a posterior, sendo ainda mais prejudicados os que discordam do que os que mantêm a opinião, pois, se a opinião é correta, aqueles que dela discordam estão perdendo a oportunidade de trocar o erro pela verdade, e, se é errada, os dela discordantes perdem o grande benefício de adquirir uma percepção mais clara e mais viva da verdade, proveniente de sua colisão com o erro. Se as ideias que temos expressado e, esperarmos, continuaremos a expressar através deste jornal não são verdadeiras e são perniciosas, não vingarão, pois a melhor maneira de destruir uma ideia falsa é expô-la! Quem estiver com a verdade não precisa temer ideias, por mais estapafúrdias que sejam, pois terão com que refutá-las, através de um franco diálogo. Aqueles que se crêem portadores de ideias verdadeiras, se querem mantê-las, devem torná-las continuamente relevantes, e não tentar impedir que novas ideias apareçam e sejam disseminadas.
Aquilo que tem sido considerado como delito, isto é, a apresentação de ideias que não se harmonizam inteiramente com os padrões oficiais, o delito de opinião, é um crime que devemos praticar diariamente, sob quaisquer riscos. Se deixarmos de ser ‘criminosos’ neste campo, estaremos roubando as gerações passadas que lutaram, até o sangue, para obter as liberdades de que somos herdeiros, a geração presente que estará tendo sua voz sufocada e reprimida, e a geração futura que sentirá que uma geração deixou de realizar o seu papel na história!
Neste espírito e com este alvo é que O CAOS em Revista sai, exatamente um mês depois do primeiro, em seu segundo número”.
[O texto completo que contextualiza esse editorial pode ser encontrado em meu artigo “O CAOS em Revista: Editoriais e Artigos de Eduardo Chaves, publicados e censurados de 18-3-1966 a 18-8-1966 [2a edição, revista e ampliada”, publicado no meu blog Liberal Space, no seguinte endereço (URL): https://liberal.space/2021/10/24/o-caos-em-revista-editoriais-e-artigos-de-eduardo-chaves-publicados-e-censurados-de-18-3-1966-a-18-8-1966-2a-edicao-revista-e-ampliada/.%5D
O arroubo é juvenil, mas me orgulho muito de ter aprendido a lição de Mill naquele distante ano de 1966 – e, tendo me convencido de sua verdade, pertinência, e relevância, de não ter ficado calado, pondo a boca no trombone, com todos os riscos envolvidos, e que se confirmaram. No entanto, como dizem alguns americanos “Someone up there must like me” [Alguém lá em cima deve gostar de mim], porque a emenda saiu muito melhor do que o soneto. Expulso do Seminário em Agosto de 1966, levou apenas um ano para as coisas sofrerem uma reviravolta e eu estar fazendo o meu Mestrado em Teologia nos Estados Unidos, no Pittsburgh Theological Seminary, com bolsa completa. Lá eu conheci David Hume (1711-1776).
Sorte ou Providência?
John Stuart Mill, só uma curiosidade, foi padrinho de Bertrand Russell, aquele que escreveu um livro famoso quando eu era moço: Por que Não Sou Cristão?
3. A Lição de Hume
Se há quem acredite que os relacionamentos de Mill tenham sido castos, ninguém acredita que os de Hume tenham tido essa qualidade (ou defeito, dependendo da perspectiva). Solteirão, avesso ao casamento (tentou dissuadir seu irmão de se casar), era bon vivant, amante da boa vida: de jantares prolongados, acompanhados de “[bom] vinho, [belas] mulheres e [lindas] canções”, como diz o nome da valsa. E de bons jogos de gamão, depois que o programa essencial houvesse sido cumprido e as damas estivessem dormindo tranquilamente nos sofás dos salons. Foi secretário da Embaixada Americana em Paris, por vários anos, e “Chargé d’Affaires”, por um bom tempo, em que a Embaixada ficou sem Embaixador. Participava, com regularidade, dos saraus literários e filosóficos promovidos pelas grandes Madames do século 18 parisiense. Por pouco não se encontrou com Thomas Jefferson, em Paris, que foi Embaixador das Colônias Britânicas na América na França, meio século depois.
A lição de Hume, considerado hoje o maior filósofo de fala inglesa da humanidade, e, por alguns, como o maior filósofo de qualquer língua, é simples. Vou dividi-la em algumas partes e colocar as partes na minha linguagem.
Lembre-se de que, antes de ser filósofo, ou secretário de embaixada, ou embaixador interino da nação mais importante de sua época, ou de ser qualquer outra coisa, você é um ser humano, e que as pessoas que discordam de você, e das quais você discorda, também são seres humanos, por mais detestáveis que sejam. Assim, independentemente de como elas se conduzam, sempre as trate com o respeito e a dignidade de que os seres humanos, sem exceção, são merecedores.
Lembre-se de que os seres humanos, embora nasçam com uma fantástica capacidade de aprender, nascem ignorantes, nada sabendo, nem nada sabendo fazer. Assim, se outros não cuidarem dele, por um tempo, eles simplesmente morrem. Mas com o tempo, dependendo de suas interações com outras pessoas e com o meio social e natural em que vivem, aprendem algumas coisas – mas não tudo que desejam, nem com o grau de convicção e certeza que alguns imaginam ter. Nossa ignorância original continua a nos perseguir, e nosso equipamento cognitivo e intelectual é falho. Esquecemos com facilidade o que aprendemos, cometemos erros de percepção e julgamento primários, raciocínios mais complexos nos eludem… Tudo isso recomenda que sejamos céticos – não só do que os outros pensam, acreditam e defendem, mas até, e principalmente, daquilo que nós mesmos pensamos, acreditamos e defendemos. Sejamos humildes, não importa quão inteligentes e sábios sejamos considerados. Nunca sejamos arrogantes, porque, no frigir dos ovos, pode ser que nós estejamos errados e nossos adversários, aqueles que discordam de nós, e dos quais nós discordamos, podem estar certos.
Lembre-se de que a gente, em regra, é rápido em perceber o erro, o dogmatismo e o fanatismo dos outros – mas a gente tem dificuldade para perceber os nossos. A natureza, ou a Providência, nos deu a capacidade de discutir e argumentar para que a gente possa resolver nossas eventuais discordâncias, divergências e desavenças com palavras e argumentos, e não com socos ou com armas. Mas, para que isso aconteça, a gente precisa ter cuidado com o que diz e com o como o dizemos, para que não sejamos, no combate ao erro, ao dogmatismo e ao fanatismo dos outros, igualmente dogmáticos e fanáticos, e, portanto, errados em nossa maneira de agir. Se o formos, a chance de que, tanto nossos adversários como nós mesmos, em um dado momento, apelemos para a ignorância e usemos nossos punhos ou nossas armas, será muito grande. E esse será um resultado muito mais calamitoso do que nossas discordâncias, divergências, ou desavenças originais.
Lembre-se de que é sempre bom ser cético em relação a uma ideia nova ou a um comportamento diferente. Em sua própria cabeça, “com seus botões”, duvide, questione, não vá aceitando e abraçando, sem um exame cuidadoso, tudo o que de novo ou diferente aparece. Muita gente considerava Hume ateu, mas ele próprio não se considerava assim. Considerava-se um cético, mesmo assim, não um “cético radical”, mas um “cético mitigado”. O ateu pode ser tão dogmático quanto o teísta. O que é necessário é ser cético – até mesmo do ceticismo da gente. Duvidar até das minhas próprias dúvidas foi uma das lições mais importante que eu aprendi. E eu a aprendi com Hume.
Lembre-se de que nem tudo precisa ser discutido. A liberdade, ou seja, o direito de não sermos coagidos, em nossos relacionamentos interpessoais, em nossa vida social, a menos que estejamos colocando em risco a vida e a segurança de terceiros, é o valor maior de nossa vida em sociedade. (Se estivermos colocando em risco nossa própria vida ou segurança, não a de terceiros, ninguém tem direito de nos impedir pela coação – só, talvez, pelo argumento). A liberdade é um bem maior até mesmo do que a verdade, nos nossos relacionamentos interpessoais. Para você mesmo, no seu íntimo, na sua privacidade, nunca deixe de perseguir a verdade. Mas os outros têm a liberdade de pensar, acreditar e agir diferente. Eles têm a liberdade até de pensar, acreditar e agir de uma forma que lhe pareça totalmente absurda e idiótica. E você não tem o direito, nem muito menos o dever, de corrigi-los, de convencê-los de que estão errados, de tentar fazer com que pensem, acreditem ou ajam numa forma que, para você, evidentemente é a mais correta e até, a seu ver, no melhor interesse deles próprios. Isto porque, se valorizamos a liberdade, do melhor interesse deles são eles próprios os únicos juízes. A coisa é diferente se eles vierem pedir a sua opinião, solicitar que você os ajude fazer sentido de coisas que não parecem estar fazendo muito sentido em um determinado momento. Em uma situação assim, faça o que você achar melhor. Mas se a conversa começar a degringolar em discussão feia, começar a se tornar conflito, pare, diga que isso é o que você pensa e só externou porque houve uma solicitação, e encerre a conversa – continuando amigos, se possível, sem criticar ou, nem de longe, ofender a quem, com humildade, pediu a sua opinião (mesmo que tenha deixado a humildade de lado e se tornado arrogante e intolerante na conversa).
Provavelmente, se eu tivesse lido e conhecido Hume antes de ler Mill, teria sido menos pugnaz, mais cético, mais humilde, e mais cauteloso no que disse e fiz em 1966. Mas o que foi dito e feito, dito e feito está.
A próxima lição que aprendi foi com Karl Popper (1902-1994), que aprendeu muito com Hume, mas, diferentemente de Hume, não exibia muita coerência, em seu comportamento pessoal, em sua convivência com seus amigos, colegas e alunos, ou mesmo com sua mulher, com aquilo que escrevia.
4. A Lição de Popper
Karl Popper é, na minha modesta opinião, o maior filósofo do século 20, em qualquer língua e em qualquer escola filosófica. Muitas de suas ideias remontam a Hume, de quem gostava, outras a Sócrates e a Sêneca, de quem também gostava. Mas detestava Platão e Aristóteles, Kant e Hegel, Marx e Freud. Dos cientistas, em meio aos quais conviveu, admirava Einstein. Foi amigo de Hayek e de vários outros Prêmios Nobel na área científica. Nasceu na Áustria, antes da Primeira Guerra, no tempo em que Viena era a capital do mundo intelectual: científico, filosófico e artístico. Cresceu e amadureceu no Entre Guerras, no momento em que a Europa Central estava vivendo uma situação difícil e perigosa, com o surgimento e fortalecimento de ideias autoritárias e totalitárias, como o Fascismo e o Comunismo. Era descendente de judeus, e fugiu da Áustria, assim que esta foi anexada pela Alemanha de Hitler. Comeu o pão que o diabo amassou, tentando emigrar para a Inglaterra, Estados Unidos, Austrália. Acabou emigrando para a Nova Zelândia, no final de 1936, recomeçando sua vida lá, em 1937, sem a maior parte de seus livros e de seus papeis, tendo de dar aula e escrever em uma língua que não era a sua, mas na qual, com foco, esforço e dedicação se tornou mestre.
A vida e as circunstâncias fizeram com que Popper aprendesse muita coisa. E ele aprendeu muita coisa com leitura, conversa e reflexão. Embora tenha frequentado boas escolas (sua família era rica) e depois tenha sido professor primário e secundário na sua terra natal, na zona rural ao redor de Viena, sua avaliação da escola e do aprendizado decorrente do ensino escolar formal e deliberado é totalmente negativa. E é por aí que começam as lições que eu aprendi lendo os livros dele…
Comecei a ler Popper em 1970, quando iniciei meu Doutorado na Universidade de Pittsburgh. Nunca o havia lido antes. Mas como meu Orientador de Tese havia sido orientado em sua tese por Popper, eu fui, com base em recomendações dele, instigado a ler Popper. Os dois primeiros livros que li foram Conjectures and Refutations [Conjeturas e Refutações], uma coletânea de artigos, e The Open Society and its Enemies [A Sociedade Aberta e Seus Inimigos]. No primeiro livro, encontrei reformulações de muita coisa que já havia aprendido com Hume, mas sempre apresentadas de uma forma mais incisiva e desafiadora. No segundo livro, encontrei, entre uma defesa da sociedade aberta, liberal e democrática, e uma crítica da sociedade fechada, nazi-fascista ou comunista, e totalitária, críticas da educação tradicional, em especial na sua versão escolar.
Em A Sociedade Aberta, Popper cita esta passagem de Samuel Butler, em seu livro Ehrewhon:
“Às vezes fico a imaginar porque é que a escola não causa mais danos aos jovens, e como é que eles, em geral, acabam crescendo sensatos e bons, apesar das tentativas deliberadas da escola de distorcer e mesmo de impedir seu crescimento. Alguns, naturalmente, não conseguem escapar dos efeitos danosos da escola e sofrem até o fim de suas vidas por isso. Outros, porém, poucos danos parecem sofrer, e alguns até se safam sem dano algum. A resposta parece ser que o instinto natural dos jovens, na maior parte dos casos, se rebela de forma tão absoluta contra o que a escola tenta fazer com eles que, não importa o que tentem os professores, não conseguem que seus alunos os tomem realmente a sério”. [A citação de Samuel Butler, Erewhon, cap. 22, “The Colleges of Unreason – Continued”.]
Popper, depois de citar a passagem, acrescenta:
“Tem se dito, e com muita verdade, que Platão foi o inventor de nossas escolas e universidades. Não conheço melhor argumento para uma visão otimista da humanidade, nem melhor prova de seu amor indestrutível pela verdade e pela decência, de sua originalidade e de sua saúde mental, do que o fato de que essa devastadora instituição não tenha sido capaz de arruiná-la totalmente”. [A citação de Samuel Butler e o comentário de Popper foram retirados de The Open Society, Vol. I, cap. 7, “Leadership”.]
A leitura dessas duas passagens, escritas por autores famosos, me fez pensar e refletir sobre a diferença entre “Educação”, de um lado, e “Escola”, ou “Educação Escolar”, do outro.
Lendo, no final dos anos 70, quando eu já era Professor de Filosofia da Educação e de Filosofia Política na UNICAMP, a Autobiografia de Popper (publicada, numa primeira versão, em 1974, e numa segunda versão, em 1976, mas escrita, conforme ele esclarece, nos “Reconhecimentos”, de 1963 a 1969, quando eu nem havia lido nada escrito por ele, encontrei esta passagem:
“Aprender a ler, e, em menor grau, aprender a escrever, são, naturalmente, OS MAIORES EVENTOS no processo de nosso desenvolvimento intelectual. Não há nada que se compare a eles, visto que poucas pessoas (e Helen Keller é a grande exceção) podem se lembrar do que significou para elas aprender a falar. [. . .] Esses dois aprendizados, da leitura e da escrita, são, na minha opinião, as únicas coisas essenciais que seria preciso ensinar a uma criança. E algumas crianças nem precisam ser ensinadas para conseguir aprender essas coisas. Tudo mais é atmosfera e ambientação. A gente aprende lendo e pensando.” [Unended Quest: An Intellectual Autobiography, ch. 3, “Early Influences”. Ênfases acrescentadas].
Essa passagem foi escrita entre 1963 e 1969. Em 1970, ela foi entregue para a equipe de Paul Arthur Schilpp, editor do livro (em dois volumes) The Philosophy of Karl Popper (que só foi publicado em 1974). No parágrafo seguinte, Popper esclarece que foi educado por seus pais, pela professora particular que o ajudou a aprender a ler e a escrever, pela leitura de livros de histórias (particularmente um, que era seu favorito, e que ele relia sempre), e pelas conversas e discussões com seus amigos.
Ou seja, antes de Ivan Illich escrever Deschooling Society [A Desescolarização da Sociedade, traduzido para o Português como A Sociedade sem Escolas] e antes de John Holt começar a falar, primeiro, de Home Schooling [Educação Domiciliar ou Doméstica ou Em Casa], depois, sob a influência de Illich, de Deschooling [a Gradual Desescolarização da Sociedade], e depois ainda de Unschooling [A Criação de uma Sociedade Sem Escolas, porque a Própria Sociedade é Educadora], tudo isso antes de a Internet e as Redes Sociais Virtuais se tornarem populares, e facilitarem esse trabalho, Popper já defendia uma Educação Sem Escolas e Sem Ensino, que tem lugar através da leitura, do diálogo, e da reflexão, no processo de buscar respostas para questões que nos interessam, de buscar soluções para problemas que enfrentamos, e no processo essencial de criticar as respostas e soluções que encontramos, algo que é feito procurando refutá-las, falsifica-las, encontrar fatos ou argumentos que as invalidem.
Isso tudo eu fui deglutindo devagar, à medida que trabalhava em uma Faculdade de Educação oficial, a da UNICAMP, comprometida não só com a escola, com o ensino, e com o professor, mas com a escola pública, com o ensino formalizado, com base em bases curriculares definidas de forma centralizada para o país inteiro, e com professores especializados, cada um em sua disciplina, e formado nelas, as Faculdades de Educação.
Além disso, a Educação, afirmava-se, não é algo que tem que ver com o desenvolvimento humano e que acontece de dentro para fora. A Educação, segundo os pedagogos de plantão, era um processo de transmissão de conhecimentos e informações disciplinares, por professores especializados nesses conteúdos. E todo aluno tem de estudar (absorver, assimilar) todos esses conhecimentos e informações porque nunca se sabe o que ele vai ser na vida e de quais conhecimentos e informações irá precisar…
Ninguém falava, como dizia um amigo meu, que a educação é o processo mediante o qual aprendemos a sonhar nossos próprios sonhos e passamos a desenvolver as competências e habilidades, bem como a buscar os conhecimentos e informações, necessários para transformar esses sonhos em realidade.
Sonhos são um termo mais poético para designar projetos de vida. Não há educação sem, primeiro, um projeto de vida, uma definição daquilo que a pessoa deseja ser na vida, aquilo que ela deseja que sua vida venha se tornar. E não há educação, segundo, se os sonhos permanecem somente sonhos e nada mais, se não há o esforço para transformar os projetos de vida em realidade, em vida vivida, em vida realizada, em eudaemonia.
Quando descobri Paulo Freire, no começo da década de 80, período em que ele veio para a Faculdade de Educação da UNICAMP e eu era Diretor da Faculdade, descobri que no seu livro mais famoso, A Pedagogia do Oprimido, ele dizia:
“Já agora ninguém educa ninguém, como tampouco ninguém se educa a si mesmo: os homens se educam em comunhão, mediatizados pelo mundo. Mediatizados pelos objetos cognoscíveis que, na prática ‘bancária’ [da educação: a educação tradicional] são possuídos pelo educador que os descreve ou os ‘deposita’ nos educandos passivos” [p.79, da 6ª edição].
Ele continua, como se já não tivesse sido suficientemente claro, malgrado uma prosa meio embolada:
“Esta prática, que a tudo dicotomiza, distingue, na ação do educador, dois momentos. O primeiro, em que ele, na sua biblioteca ou no seu laboratório, exerce um ato cognoscente frente a um objeto cognoscível [i.e. aprende algo diante do que é possível aprender – EC], enquanto se prepara para suas aulas. O segundo, em que, frente aos educandos, narra ou disserta a respeito do objeto sobre o qual exerceu o seu ato cognoscente [i.e., narra, apresenta, procura transmitir o que aprendeu – EC]. O papel que cabe a estes [os educandos], como salientamos nas páginas precedentes, é apenas o de arquivarem a narração ou os ‘depósitos’ que lhe faz o educador [i.e., absorver, assimilar, memorizar o que o educador apresentou – EC]. Desta forma, em nome da ‘preservação da cultura e do conhecimento’, não há conhecimento, nem cultura verdadeiros. Não pode haver conhecimento pois os educandos não são chamados a conhecer [i.e., aprender – EC], mas a memorizar o conteúdo narrado pelo educador. Não realizam nenhum ato cognoscitivo [i.e., não aprendem nada – EC], porque o objeto que deveria ser posto como incidência de seu ato cognoscente [i.e., porque àquilo que deveriam aprender – EC] é posse do educador [i.e., somente o educador teve acesso] e não mediatizador da reflexão crítica de ambos [i.e., e não possibilitou a reflexão crítica de ambos – EC.” [p.79].
Paulo Freire parece ir além de Karl Popper porque está disposto a afirmar que nem o educador, sozinho, em seu escritório ou em seu laboratório, quando prepara as suas aulas, está se educando (porque lhe falta o fator mediatizador da reflexão crítica que deveria haver na interação com os alunos), nem, muito menos, o educando, na sala de aula, que simplesmente ouve, absorve e assimila (memoriza) a exposição do professor. Karl Popper certamente concorda que o que acontece com o aluno não é, nem de longe, educação, mas diria que o educador, ao preparar suas aulas, se for sério e dedicado, pode estar se educando através dos livros e de outros materiais didáticos (“objetos cognoscíveis”), porque ele está sempre interagindo com terceiros, ou através da leitura, com os autores dos textos, ou diretamente, através da conversa, do diálogo, da discussão crítica, com seus pais, familiares e amigos. Só que a educação é só dele. Popper argumentou que os aprendentes devem eles mesmos interagir com os “objetos cognoscíveis” que na educação tradicional são exclusividade do professor. Porque é só na interação com eles, seja diretamente, com quem quer que for, seja através da mediação de textos, e na reflexão que essa interação provoca, que as pessoas verdadeiramente se educam. A diferença entre Freire e Popper acaba sendo pequena, e, dos dois, Popper é mais revolucionário, porque concebe uma educação que se faz sem escolas, sem ensino formal, sem professor especializado e profissionalizado (mas não sem livros ou sem discussão com alguém, que não precisa ser um professor).
Mas entre as áreas em que Popper se tornou famoso não está, infelizmente, a educação. Há pouquíssimos artigos e, que eu saiba, apenas um livro, sobre o assunto. Entre as áreas em que Popper é famoso estão, isto sim, a filosofia da ciência e a filosofia da política (normalmente chamada de filosofia política, embora esta expressão seja errônea). Vou tentar resumir suas principais contribuições nessas áreas.
Eis como Popper inicia uma Conferência dada em Lisboa, em 1987, quando já estava com 85 anos, a convite de Mário Soares, então Presidente de Portugal:
“… Quero esclarecer à partida [de início] que não pretendo convencer-vos com os meus argumentos. Embora procure apresentá-los da maneira mais simples e mais evidente, tenho plena consciência de que não são perfeitos. Errar é próprio dos homens – e reconheço que errei muito ao longo da minha vida de mais de 85 anos.” [A Conferência está transcrita como capítulo 18 na edição Portuguesa de Em Busca de um Mundo Melhor, a partir da qual eu faço as citações.]
Pode-se notar aí ecos de Hume.
Já se disse que quem não foi socialista antes dos 30, não tem coração, e que quem continua a sê-lo, depois dos 30, não tem cabeça… Bem, Popper foi socialista e até mesmo embarcou no Comunismo, mas aos 17 anos abandonou o Marxismo e tornou-se um de seus maiores críticos no século 20. Eis o que ele diz, na mesma conferência:
Nasci em Viena e a grande experiência da minha vida foi a época da Primeira Guerra Mundial – que foi desencadeada pela Áustria, o meu próprio país – e o pós-guerra. Nascido numa família de pacifistas, durante algumas semanas de 1919 (ainda não tinha 17 anos), fui atraído pelo Comunismo, pois os comunistas russos tinham assinado o Tratado de Paz de Brest Litovsk (o primeiro tratado de paz) e feito muita propaganda daquilo a que chamavam o seu pacifismo. Uma experiência convenceu-me, porém, de que o Partido Comunista não se opunha à violência e não hesitava em pôr em risco vidas humanas, mesmo as dos seus próprios apoiantes. Essa experiência levou-me a reconsiderar a Teoria Marxista, contra a qual me revoltei um pouco antes de completar 17 anos. Concluí que, não apenas eu, mas ninguém mais, sabia o suficiente para basear nos seus conhecimentos uma decisão que pudesse conduzir ao derramamento de sangue de outras pessoas em prol de um mundo melhor.
Plenamente consciente da minha ignorância acerca da sociedade e do seu futuro, acabei por verificar que a Teoria da História de Marx e a sua profecia sobre o advento do Socialismo, embora engenhosas, tinham muitas falhas. [. . .]
[Na Universidade de Viena] descobri que, dois mil e quinhentos anos antes de mim, Sócrates tinha dito: ‘Sei que nada sei – e mal isso sei: só sei, portanto, que não sei. Mas quero saber e quero aprender.’
Foi ao amor pelo conhecimento, juntamente com a consciência da nossa própria ignorância, que Sócrates chamou ‘Filosofia’, palavra que significa ‘ânsia de conhecer’. O mesmo Sócrates disse que todos nós ansiamos por aquilo que não temos – neste caso, a sabedoria.
Infelizmente, a tradição socrática quase desapareceu. A maior parte dos filósofos pensam que sabem.” [Mesma conferência de Lisboa.]
No restante da Conferência Popper discute sua teoria da Democracia, que se opõe à teoria tradicional.
A teoria tradicional da democracia tenta responder à questão: Quem deve governar? Platão respondeu: Os filósofos, que são os que mais sabem. Marx respondeu: A classe proletária, por ser a maior e aquela que realmente produz na sociedade, mas ela deve fazê-lo através de sua vanguarda, os intelectuais engajados com a promoção dos interesses do povo, não das classes até então dominantes.
A teoria da democracia que Popper defende parte do pressuposto de que a Democracia não é o melhor sistema de governo em um sentido absoluto. Ela é um sistema falho. Só que, como bem disse Winston Churchill no que parecia ser um chiste, não há nenhum melhor que o sistema democrático. A alternativa à democracia é a ditadura. Na ditadura os governantes se instalam no governo e não saem mais. E é possível chegar a uma ditadura através do voto popular da maioria, dentro da visão tradicional da democracia.
Por isso Popper propõe uma teoria democrática minimalista. Não é tão importante como os governantes chegam a governar. Pode ser por voto universal direto, pode ser por voto parcial direto, por voto universal ou parcial indireto. O importante é isto:
“Como deverá ser constituído um Estado de modo a que os maus governantes possam ser afastados do poder sem violência, sem derramamento de sangue?” [Mesma conferência de Lisboa.]
Um sistema parlamentar, independentemente de ser presidencialista ou monarquista, deve ter poderes limitados e bem definidos, e deve ser de fato governado por alguém que pode ser facilmente deposto através de um voto de desconfiança da maioria do Parlamento, sem prazos de quatro, cinco, seis, oito, dez anos, ou outros. Se tudo for bem, pode ficar mais de dez anos, até que perca a confiança do Parlamento. Aprovado esse voto de desconfiança, o Primeiro-Ministro deve convocar eleições dentro de um prazo curto e novas eleições devem ser realizadas. Se o partido dele, sozinho ou em coalisão, vencer (conseguir maioria), ele continua, caso contrário entra um outro. Não há revoltas, não há golpes, não há o sensacionalismo que há em países como os Estados Unidos e o Brasil (que se orgulha de ser o maior país do mundo que elege seu governante máximo pelo voto direto de todos os cidadãos, alfabetizados ou não, acima de uma certa idade definida em lei). Acho a proposta de Popper muito melhor do que algo parecido com o que há nos Estados Unidos e aqui no Brasil.
Pode-se ver que Popper, que nasceu na Áustria, tornou-se um defensor de algo muito parecido com a democracia britânica, que é a mais antiga do mundo e que convive bem com a nobreza e a monarquia. Mas a admiração dele se estende também para a Suíça, talvez o país (minúsculo) mais admirável da Europa Central, por seu amor à liberdade, à independência, à autonomia. A Suíça nunca foi um país poderoso belicamente. Mas, por outro lado, nunca teve um poder central poderoso. O poder estava investido no povo dos diversos cantões, que preservam boa parte de sua autonomia e zelam por sua independência e liberdade. Alguns desses cantões continuam a ser considerar repúblicas até hoje, como o Cantão de Genebra.
Num belíssimo artigo chamado “On Freedom” (escrito em 1958, e hoje disponível no seu livro Alles Leben ist Problem Lösen, coleção de conferências e artigos publicados originalmente em Alemão, em 1994, e que foi traduzido e publicado em Inglês, em 1999, como All Life is Problem Solving, com tradução de Patrick Camiller, e que foi originalmente o texto básico para um seminário que ele ministrou em Alpbach, nos Alpes Austríacos, na região do Tirol), Popper compara a democracia inglesa com a democracia suíça. Ambas tiveram começos muito distintos, mas hoje se parecem muito e são as duas democracias mais antigas e confiáveis da Europa.
A democracia inglesa nasceu com a nobreza, que prezava a sua liberdade, que queria manter a propriedade de suas terras, e que para garantir, a liberdade e a propriedade, criou uma Constituição, a Carta Magna, em 1215. Foi essa nobreza, séculos depois, levou o país a se libertar do jugo da Igreja Católica Romana no século 16, proclamando o seu nobre mais eminente, o Rei, o chefe do que era a Igreja Católica da Inglaterra. Inicialmente, a Reforma Protestante da Inglaterra consistiu nisso, em colocar o Rei da Inglaterra no lugar do Papa, e confiscar, para a nova Igreja, as propriedades da antiga Igreja. Outras mudanças vieram posteriormente, pouco a pouco.
A democracia suíça não foi criada por nobres: foi criada por camponeses: agricultores e criadores de animais domésticos de vários tipos (vacas, cabras, ovelhas). Esses camponeses, ameaçados pelos grandes proprietários de terra de territórios maiores e mais fortes ao redor (França, Itália, Áustria, Alemanha) fugiram para os lugares mais inóspitos dos Alpes, o alto das montanhas e os vales protegidos pelas montanhas quase intransponíveis. Fizeram isso por amor à liberdade, à independência, à autonomia, à proteção de seus poucos bens: animais. Nas novas moradias, apossaram-se de pequenas propriedades: minifúndios, nenhum latifúndio. Não criaram um poder central, uma monarquia: foram, aos poucos, constituindo uma confederação de pequenas repúblicas.
Assim iniciaram-se as duas mais antigas democracias da Europa, uma em um conjunto de ilhas, ao norte, outra no coração da Europa Central, cercada por grandes poderes. Mas hoje elas têm muitas características em comum. A Suíça nunca entrou na União Europeia, para preservar sua autonomia. A Inglaterra acabou de sair da União Europeia para reconquistar a parte de sua autonomia que estava sendo perdida para uma burocracia sedenta de poder com sede em Bruxelas, Luxemburgo e Estrasburgo.
Nenhuma das duas democracias tentou grandes mudanças revolucionárias: seu aperfeiçoamento se dá através de pequenas mudanças e reformas setoriais, cuidadosamente implementadas. Nosso conhecimento é limitado e nós somos falíveis para tentar fazer grandes mudanças sistêmicas, abrangentes, que afetam, de uma vez, todos os aspectos da vida social, numa tentativa de alcançar uma utopia. As mudanças devem ser feitas aos poucos, pedacinho por pedacinho. Uma deve ser consolidada antes de outra ser iniciada, para que as mudanças feitas possam ser revertidas, se não derem certo, sem que, com isso, se crie caos e anarquia. Mas devemos ter clareza sobre nossos valores básicos, e deve ser nosso objetivo maior lutar a qualquer custo para preservar esses valores, entre os quais estarão sempre a liberdade, a independência, a autonomia – da nação e, no maior grau possível, dos seus cidadãos. [Artigo “On Liberty”.]
A liberdade deve ter como aliada a racionalidade.
Popper tem uma visão totalmente distinta da racionalidade. Ser racional é ser crítico, em primeiro lugar de si próprio, depois dois outros, em última instância dos governos. Ela parte do pressuposto, não de que somos da espécie homo sapiens, a coroa da criação, mas de que somos ignorantes e falíveis, e, por conseguinte, devemos, em primeiro lugar ter humildade. Platão achava que os filósofos devem ser os reis, os governantes maiores da nação, porque são os que mais sabem. Popper acha que os filósofos, longe de tentarem governar, devem ser os críticos, devem procurar os erros, os jeitos de melhorar… É isso que significa ser racional. Eis o que diz Popper, no mesmo artigo sobre a liberdade:
“Quando eu falo em razão e em racionalidade, o que tenho em mente é a convicção de que podemos aprender através de nossa crítica aos nossos erros e desacertos, especialmente quando essa crítica é feita pelos outros, mas, também, quando ela é autocrítica. O racionalista é a pessoa para a qual é mais importante aprender do que estar certo, do que ter razão. Um racionalista é simplesmente alguém que se dispõe a aprender com os outros, com os seus pares – não simplesmente se apossando das opiniões dos outros, mas permitindo que os outros critiquem suas ideias e se dispondo, quando necessário, a criticar as ideias dos outros. A ênfase está na ideia da crítica, ou, mais precisamente, na discussão crítica. O racionalista genuíno não acredita que ele, ou qualquer outra pessoa, tenha encontrado a verdade e dela tenha se apossado. Também não acredita que a crítica seja uma forma de gerar e produzir novas ideias. O que ele pensa é que, na esfera das ideias, apenas a discussão crítica pode nos ajudar a separar o joio do trigo. Ele está bem ciente de que a aceitação ou rejeição de uma ideia nunca é uma questão puramente racional. Mas ele está convicto de que só a discussão crítica nos dará a maturidade necessária para olhar uma ideia dos mais variados ângulos e fazer um julgamento correto sobre ela. [. . .] A racionalidade pode ser descrita assim: ‘Talvez eu esteja errado e você certo; talvez vice-versa. De qualquer modo, nós podemos esperar que, depois de nossa discussão, nós dois, tanto eu como você, possamos ver as coisas com mais clareza do que antes. Que nós dois cheguemos mais perto da verdade é mais importante do que concluir quem está certo, se você ou eu. [. . .] O verdadeiro racionalista não almeja convencer ninguém de nada. De um lado, ele sabe, o tempo todo, que ele próprio pode estar errado e o outro, certo. De outro lado, ele valoriza a independência e autonomia intelectual do outro, a liberdade de pensar dele, a tal ponto que não deseja convencê-lo a mudar seu ponto de vista para o seu próprio. O que ele quer é que ambos cheguem mais próximos da verdade. [. . .] Ele sabe que, fora da área estreita da lógica, e, talvez, da matemática, nada pode jamais ser provado. Nós certamente podemos apresentar argumentos e examinar criticamente os diferentes pontos de vista. Mas mesmo que os argumentos sejam válidos, suas premissas não estão acima de crítica. Precisamos sempre pesar as razões apresentadas, verificar quais têm maior peso, tanto as favoráveis como as contrárias a determinado ponto de vista. E é o fato de que, nesse processo, a decisão a ser tomada deve ser livre que torna a liberdade de opinião importante e preciosa.” [Mesmo artigo. Tradução minha.].
Já me estendi demais sobre Popper. Vou concluir falando um pouco de Sócrates (469-399 AC).
5. A Lição de Sócrates
Sócrates é conhecido mais como filósofo — e filósofo subversivo, em decorrência de que foi condenado à morte pelos poderes de Atenas — do que como educador. Mas aqui quero apresentar a figura de Sócrates, o educador. Talvez o maior educador que já tenha vivido. Foi um educador, mas não foi um ensinante. Preferiu se considerar um facilitador da aprendência alheia, ou um parteiro de novos aprendentes – auto aprendentes seria melhor. Um auto aprendente é alguém que aprende sem que se lhe ensine.
Sócrates afirmou que a única coisa que ele sabia era que nada sabia. Popper já fez referência a essa afirmação de Sócrates. Cabe perguntar: como pode alguém que afirma nada saber ser um educador – quiçá o maior educador que já viveu?
É simples. Reconhecendo que nada sabia, Sócrates também reconhecia que precisava aprender. E o jeito que ele inventou para que ele próprio aprendesse foi ajudar os outros a conceber e a parir suas ideias. Popper se via como um parteiro de ideias, e entendia a sua função como sendo parturiar (ou partejar, como prefere Houaiss) as ideias dos outros (sem ele próprio, sendo já velho, parir nenhuma) – e daí criticá-las, discuti-las criticamente, forçando os outros a pensar cada vez mais, cada vez melhor, vale dizer, cada vez mais criticamente. Popper era um parteiro de ideias – um parteiro crítico, um racionalista crítico, enfim. Um educador de primeira.
Na época de Sócrates a escrita já havia sido inventada. Mas Sócrates não a usava. Preferia usar a fala, porque, com a fala, o diálogo é síncrono, imediato.
Por muito tempo, a fala e a comunidade (em especial a comunidade familiar estendida) foram as principais “tecnologias” usadas na educação. Antes da invenção da escrita alfabética e da consequente invenção do texto, educava-se em família, com as pessoas vivendo juntas, conversando, explicando, mostrando como fazer as coisas, ajudando uma a outra a aprender a fazer as coisas, seja no plano manual, seja no plano intelectual. É nesse contexto que Sócrates se via como educador – só que ele estendeu a comunidade familiar para a comunidade da cidade: a comunidade da praça, da ágora.
Mesmo fora do âmbito familiar, Sócrates, usava apenas a fala como “tecnologia” no seu processo pedagógico focado no diálogo. Stricto sensu, ele dispensava até mesmo a comunidade: seus alunos vinham a ele individualmente e ele lidava com eles de forma personalizada, um a um. Apenas conversava com eles.
Pelo menos três características do método socrático são importantes aqui.
Em primeiro lugar, Sócrates educava na praça – no lugar em que as pessoas viviam, não em um local separado, segregado da vida, do dia-a-dia.
Em segundo lugar, a conversa era centrada nos interesses dos seus interlocutores: não era pautada pelos interesses do “mestre”.
Terceiro, os alunos tinham participação ativa no processo.
Reunindo tudo, podemos dizer (usando conceitos atuais) que, com Sócrates, temos uma educação inserida na vida real, personalizada, centrada nos interesses dos alunos e focada na sua aprendizagem ativa, interativa, comunicativa, colaborativa.
É curioso (e até certo ponto triste) que não tenha ocorrido a Sócrates criar uma comunidade de alunos interessados nas mesmas coisas e questões para que eles se beneficiassem não só da interação com ele, o mestre-parteira, que os ajudava a dar à luz suas próprias ideias, mas também do diálogo uns com os outros – ou seja, da aprendizagem colaborativa. Tanto quanto sabemos, Sócrates nunca criou uma comunidade de aprendizagem, como uma escola…
É também curioso que Sócrates tenha optado por não usar, e mesmo rejeitar, os recém-aparecidos textos (livros manuscritos) na educação de seus discípulos. Na verdade, criticou uso do texto como tecnologia educacional: ele não traz nenhum benefício e prejudica a aprendizagem, enfraquecendo a memória e substituindo o diálogo…
É verdade que, logo depois de Sócrates, e sob a liderança de discípulos seus, apareceram liceus e academias, ou seja, escolas mais ou menos parecidas com as que hoje temos. Isso indica que, a partir dessa data, comunidades específicas de aprendizagem, compostas de pessoas com interesses de aprendizagem comuns ou afins, apareceram no cenário educacional. Essas comunidades de aprendizagem fizeram uso bastante eficaz da “tecnologia” da fala.
No período pós-socrático, e por muito tempo depois, a educação fez uso quase que exclusivamente das “tecnologias” da comunidade e da fala. No entanto, porque houve necessidade de racionalizar ou otimizar o processo, um mestre passou a se ocupar de vários alunos – e, com isso, perderam-se algumas características importantes da pedagogia socrática: a personalização, o foco no aluno e nos seus interesses, o diálogo interpessoal… E a educação saiu da praça e passou a ter lugar dentro da escola, perdendo contato com a vida real.
Dessa forma, gradativamente, processos vitais e processos cognitivos foram se distanciando, a educação foi se despersonalizando, o foco foi se transferindo do aluno e seus interesses para o professor, seus interesses e especialidades, e a aula, unidirecional, não dialógica ou “discutitiva”, passou a ser a metodologia favorita, em lugar do questionamento dialógico (ou do diálogo questionador) de Sócrates. E, assim, os alunos deixaram de dar à luz as próprias ideias para adotar as ideias dos mestres…
É essa educação que, como vimos atrás, Paulo Freire criticou.
De Sócrates até a invenção da prensa de tipo móvel, no século 15 da era cristã, o texto foi muito pouco usado na educação. Livros manuscritos existiam, mas eram poucos e, por isso, tão preciosos que ficavam trancados (até mesmo acorrentados) em bem guardadas bibliotecas (vide O Nome da Rosa). Quase não eram usados na educação.
Com o aparecimento do livro impresso, a partir de 1455, isso mudou, e o uso do texto se disseminou rapidamente, o livro passando, gradualmente, a competir com a fala pela condição de principal tecnologia utilizada na educação. Mas a comunidade continuou a ocupar um papel totalmente secundário. Os dois, o livro e a fala, encontraram uma forma pacífica de convivência.
Com o livro impresso surgiu (a partir da Reforma Protestante) a escola moderna, organizada em torno de um currículo definido por uma autoridade central, com os professores ocupando o papel de protagonistas no palco principal. A vida escolar dos alunos passou a ser totalmente regimentada, com pouca ou nenhuma liberdade. Seu ofício passou a ser ficarem quietos, prestar atenção ao que dizia o professor, anotar os pontos relevantes e fazer, no tempo livre, até mesmo em casa, as leituras exigidas ou recomendadas pelo professor.
E a matética, a arte de aprender, foi substituída pela didática, a arte de ensinar…
Mais ou menos três séculos depois surgiu a escola pública, de massa, controlada pelo Estado, que adotou o mesmo modelo.
A escola moderna é, certamente, uma comunidade de aprendizagem. No entanto, a comunidade existente na escola moderna é, em grande parte, criada por imposição, não pela união de interesses comuns e afins. Nela, o protagonismo estudantil, a personalização da educação e o método dialógico, que imperaram sob Sócrates, se perderam totalmente, e o modelo de educação se consolidou.
As Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) digitais, centradas inicialmente no acesso à informação escrita, e, logo depois, na comunicação um-para-muitos (o Telecurso, o Ensino a Distância, o site na Web etc.), se prestaram muito bem, num primeiro momento, a reforçar o paradigma educacional da escola moderna, centrado na transmissão de informações de um (o mestre) para muitos (os alunos). Elas foram usadas para dar suporte e sustentação para esse modelo tradicional, bem como para estendê-lo cuidadosamente.
O computador, o projetor multimídia, o telão, a lousa eletrônica e até mesmo a Internet (especialmente a Web) reforçaram o modelo, dando-lhe maior eficiência. A comunicação continuava a ser de um para muitos.
O Ensino à Distância permitiu que o alcance do modelo fosse ampliado, levando ao aparecimento de telecursos, tele aulas, ensino virtual etc. – atividades que, exceto pela distância, eram bastante semelhantes às aulas presenciais.
Mas, um dia, surgiram as redes sociais, das quais Facebook é o exemplo mais completo.
Ainda não sabemos, com precisão, como as redes sociais vão afetar a educação. O estabelecimento escolar tem resistido a elas, e (de sua perspectiva) com boa razão, porque elas representam uma ameaça significativa ao paradigma educacional vigente.
Vejamos por quê.
A rede social é uma ampla comunidade genérica que permite a criação de inúmeras comunidades específicas de pessoas com interesses comuns ou afins.
As comunidades específicas são criadas pelos próprios usuários a partir de seus interesses e os demais usuários agregam-se a comunidades de terceiros também conforme os seus interesses.
Na rede social, mesmo quando comunidades específicas são criadas para servir os objetivos de instituições, a comunicação rapidamente se torna muitos-para-muitos.
A rede social já incorporou a tecnologia do texto, da imagem, do vídeo, do e-mail, da mensagem instantânea, e muito em breve incorporará a tecnologia da fala.
Na rede social o texto é usado não só para a comunicação interpessoal (substituindo a fala, enquanto esta não está disponível) como também para a publicação ou republicação de textos, fato que faz das redes sociais não só redes de pessoas, mas, também, verdadeiras mídias sociais.
Os textos publicados na rede social em geral são curtos (nunca um livro, nem mesmo um ensaio), objetivos, relevantes e pertinentes ao foco de uma comunidade específica e geram imediata repercussão e discussão.
Consequentemente, a rede social é um ambiente extremamente adequado para uma educação personalizada, ativa, interativa, comunicativa, colaborativa, pautada pelos interesses dos participantes, em que, nas palavras de Paulo Freire, ninguém educa ninguém e ninguém se educa sozinho, mas todos se educam uns aos outros, em diálogo e comunhão.
É apenas questão de tempo para que o paradigma mude. O processo de sua subversão está em curso. Sócrates, o subversor por natureza, se visse o que está acontecendo, daria pulos de alegria.
Quem sabe, no final, a lição de Sócrates prevalecerá. Vale torcer.
[Aproveitei, nos parágrafos anteriores, um artigo que escrevi em 21 de Março de 2011 e publiquei, com o título de “Tecnologia, Redes Sociais e Educação”, no Blog da Editora Ática, no site da (então) Abril Educação. A primeira vez que tratei de Sócrates no contexto da educação foi no meu livro Tecnologia e Educação: O Futuro da Escola na Sociedade da Informação, Mindware Education Editora e Ministério da Educação, São Paulo, SP, 1998.]
6. Considerações Finais
Fiz, nos capítulos anteriores, uma salada mista, com vários ingredientes. Usei basicamente ideias de Mill, Hume, Popper e Sócrates. Acabei por misturá-las todas. Como dizia Rubem Alves, a gente, quando lê um livro ou um autor, ingere o que ele escreveu, digere, mistura com coisas que outras pessoas escreveram, usa elementos que já estavam incorporados ao nosso organismo, faz uma sala mista, da qual muita coisa é aproveitada e o restante é eliminado. Aprender com textos, como Popper propõe, é na verdade, aprender com os outros, porque atrás de cada texto há gente. E com os outros a gente discute o que aprendeu, não para convertê-los aos nossos pontos de vista, mas para que eles e nós nos aproximemos mais da verdade. A educação é o processo mais ativo, interativo, comunicativo, colaborativo que existe. Esta é a grande lição. Não é algo que uns fazem para ou com os outros. Ninguém educa ninguém, como bem disse Paulo Freire. Mas ninguém se educa a si próprio sozinho. Nós nos educamos uns aos outros – “em comunhão”, disse Freire. E nossa educação é centrada nas questões e nos problemas que encontramos ao viver a nossa vida no mundo: em casa, na praça, nos locais de trabalho, nos locais de recreação e lazer, nos momentos de plena atividade e nos momentos de ócio criativo e reflexão. Se encontrarmos numa escola um professor inspirado disposto a discutir um assunto que nos fascina, podemos até aprender na escola. Mas isso é algo que raramente acontece. Como disse John Steinbeck em um texto maravilhoso, isso é raro, muito difícil de acontecer. Termino com o texto de Steinbeck:
“É comum que adultos se esqueçam de quão difícil, chata e interminável é a escola. (…) A escola não é coisa fácil e, a maior parte do tempo, não é nada divertida. Contudo, se você tem sorte, pode ser que encontre um professor. Professores verdadeiros, com a melhor das sortes, você vai encontrar no máximo uns três durante a vida. Acredito que um grande professor é como um grande artista: há tão poucos deles como há poucos grandes artistas. O ensino pode mesmo ser visto como a maior das artes, visto que o meio em que se exerce é a mente e o espírito do ser humano. Os meus três tinham estas coisas em comum. Todos eles amavam o que estavam fazendo. Eles não nos diziam o que saber: catalisavam um desejo fervente de conhecer. Sob sua influência, os horizontes de repente se abriam, o medo ia embora e o desconhecido se tornava conhecível. Mas, mais importante de tudo, a verdade, esta coisa perigosa, se tornava bela e muito preciosa”.
[Nota: Infelizmente, não consegui traçar a referência dessa citação, que me foi passada pela Profa. Maria Eugênia Castanho da Faculdade de Educação da Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUCCAMP). Nem mesmo ela dispõe, atualmente, da referência. Contatei até mesmo o National Steinbeck Center (http://www.steinbeck.org), sem nenhum sucesso. A citação está presente em meu livro Educação e Desenvolvimento Humano: Uma Nova Educação para uma Nova Era, 2ª edição, 2019, Mindware Education Editora e Amazon KDP, São Paulo, SP. A 1ª edição é de 2003.]
Em Salto, 22 de Janeiro de 2022 (22.1.22)