[Estou tentando recolher artigos já escritos em que discuto algum aspecto da vida e da obra de Karl Popper. Achei este, publicado originalmente no meu blog Liberal Space, em 26 de Maio de 2013, em que firmo uma posição que foi derivada, em grande medida, do livro fantástico (e já antigo) de Sir Karl Popper (filósofo e dualista) e Sir John Eccles (este neurocientista e brain researcher, prêmio Nobel em neuromedicina), The Self and Its Brain… Farei referência ao livro no final, mas aqui já sublinho o fato de que o título do livro é significativo: sugere que o cérebro é conduzido pela mente, não vice-versa: the self and ITS brain. Minha amiga Daisy Grisolia prestou uma homenagem significativa ao valor desse livro no Facebook, em 3/3/2018, comentando lá o primeiro artigo deste blog Karl Popper.]
o O o
Discordo totalmente da opção que Hélio Schwartsman faz na Folha de S. Paulo de hoje, 26/5/2013, ao final de seu artigo. Chamo o que ele faz de “opção” porque claramente não é a “conclusão” de um argumento bem fundamentado.
O Hélio se pergunta:
“A mente humana é idêntica ao cérebro ou encerra algo mais?”
E responde:
“Até prova em contrário, fico com a primeira hipótese”, ou seja, com a hipótese (ou tese) de que “a mente humana é idêntica ao cérebro”. Em outras palavras: a hipótese (ou tese) é de que a mente não existe — tudo o que existe é o cérebro; a realidade não tem uma dimensão mental: ela é totalmente material; enfim: a hipótese é de que o materialismo é verdadeiro.
Se se tratasse meramente de uma hipótese, tudo bem. Ela tem sido proposta e mantida por muita gente.
Mas o Hélio quer que tratemos a hipótese como se fosse verdadeira — ou pelo menos como se tivesse sido comprovada de alguma forma.
Com base em quê?
Eis o que ele diz:
“Descartá-la [descartar essa hipótese] significaria jogar fora o paradigma materialista que está na base de todas as conquistas científicas dos últimos 200 anos.”
Essa justificativa de Hélio Schwartsman “begs the question“. “Begging the question” é pressupor que é verdadeiro exatamente aquilo que se deseja provar. Os antigos chamavam isso de “petitio principii“: justificar o princípio (a tese) que se deseja provar com o próprio princípio (a própria tese).
Por que devo considerar a mente idêntica ao cérebro? Porque eu sou materialista, diz ele. Isto é: considero a mente idêntica ao cérebro porque… porque considero a mente idêntica ao cérebro. Em última instância é isso que ele diz.
É lastimável.
O Hélio diz que, “até prova em contrário”, acredita nisso.
Não vou nem discutir a quem cabe a prova — o “onus probandi“, como diziam os antigos e ainda dizem os advogados.
Ele quer uma prova em contrário?
Muitas pessoas ficam doentes mentalmente em função de coisas em que acreditam. O paranóico acredita que todo mundo o persegue — e isso faz com que se comporte de forma que consideramos doentia. O hipocondríaco acredita que está doente quando não está — e isso faz com que se comporte de forma que consideramos doentia. O ciumento compulsivo vê riscos e evidência de traição em comportamentos perfeitamente normais e naturais — e isso faz com que se comporte de forma que consideramos doentia (levando-o, às vezes, até a matar a pessoa a quem ama e, não raro, outras).
Se a ciência que, segundo Schwartsman, adota o “paradigma materialista”, conseguisse identificar e mostrar, ao escanear o cérebro da pessoa, e sem que depender do que ela própria diz,
(a) aquilo que ela está pensando, no momento, ou aquilo em que ela acredita, continuamente, e que serve de fundamento para a sua vida, e
(b) que aquilo que ela está pensando o em que acredita está na base de sua doença (patologia), e,
(c) manipulando os estados de seu cérebro, seja por inputs elétricos, seja ação química (medicamentos), ou seja de qualquer outra forma, e, assim fazendo, conseguisse curar a pessoa,
eu ficaria razoavelmente convencido de que o “paradigma materialista” é digno de credência…
Mas a ciência não consegue fazer isso – pelo menos por enquanto. O Hélio afirma que “o conhecimento do cérebro . . . só engatinha”, assim dando a entender que, quando esse conhecimento estiver mais desenvolvido (quem sabe na fase de andar como uma criança de três anos), a ciência será capaz de demonstrar que “a toda patologia [inclusive às chamadas doenças mentais hoje] correspondem alterações anatômicas ou eletroquímicas no encéfalo”.
Então, SE e QUANDO isso acontecer, deixará de existir a “doença mental”, propriamente dita: toda doença, que hoje parece mental, será doença cerebral. E os psicanalistas e psicoterapeutas, que trabalham com a mente, e que usam a fala (não descargas elétricas, drogas ou outra forma de manipulação física do cérebro) como forma de terapia, ficarão desempregados.
Acho difícil (embora não impossível) que isso venha a acontecer.
Mas enquanto isso não acontece, acho que deveríamos manter a mente aberta (ou seria o cérebro aberto?) — não é verdade?
Não basta dizer, como o faz o Hélio, que, como o paradigma hoje usado pela ciência é materialista, devemos acreditar que a mente não existe e se comportar como não existisse. O método científico é um método autolimitante: ele se aplica em ou sobre coisas que podem ser observadas. Não lida — ou não lida bem — com coisas em princípio não observáveis — como se acredita ser a mente humana.
E o pensamento e as crenças das pessoas não são observáveis examinando-se o seu cérebro. Pelo menos, não o são, por enquanto, no estágio atual do desenvolvimento científico.
Além do mais, a tese materialista não é científica: é uma tese metafísica (filosófica). Por mais útil que a ciência possa ser, esse fato não prova que a realidade é constituída apenas de realidades materiais.
Estudei e lecionei epistemologia, filosofia da religião e filosofia da ciência. Fui cético por muito tempo das crenças religiosas, em geral, e do Cristianismo, em particular. Considerei-me ateu por cerca de 35 anos. Voltei para a igreja depois que comecei a aplicar meu ceticismo à própria ciência e às suas pretensões (metafísicas).
Hoje reconheço que é preciso muita fé — mas muita fé, mesmo — para acreditar que um dia os neurocientistas que pesquisam o cérebro vão ser capazes de dizer, escaneando o meu cérebro: “este cara é presbiteriano, sãopaulino, liberal, cético de determinadas pretensões científicas e, por cima, ama a Paloma com paixão e acredita que é correspondido…”
A fé necessária para eu acreditar, hoje, no que está no parágrafo anterior é maior do que a fé necessária para eu acreditar que temos uma mente e que essa mente é capaz de causar eventos no mundo material e, evidentemente, social (bem como, naturalmente, de sofrer a sua influência).
Para a crença na existência da mente e sua causalidade no mundo não mental temos excelente evidência.
Temos, eu creio, uma manifestação constatável de que a mente existe no fato de que algumas (se não todas) doenças ditas mentais podem ser curadas apenas com a fala, com conversa, com papo, sem que saibamos (nem mesmo o terapeuta) um iota sobre o estado físico do cérebro do paciente.
Pode até ser que a cada “evento mental” corresponda um “evento cerebral” (a chamada tese dualista-paralelista). Mas, neste caso, parece-me plausível que o evento mental seja a causa do cerebral — e não vice-versa.
Vide a esse respeito o fantástico (e já antigo) livro de Sir Karl Popper (filósofo e dualista) e Sir John Eccles (este neurocientista e brain researcher, prêmio Nobel em neuromedicina) The Self and Its Brain… O título do livro é significativo: sugere que o cérebro é conduzido pela mente, não vice-versa: the self and ITS brain.
É isso. Por enquanto. Que venga el fuego.
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Folha de S. Paulo
26 de Maio de 2013
HÉLIO SCHWARTSMAN
A unificação
SÃO PAULO – Saiu a quinta versão do “Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM)”. Embora essa seja uma publicação da Associação Psiquiátrica Americana, a obra funciona como uma bíblia das doenças mentais no mundo todo. Não é coincidência que laboratórios acompanhem de perto a elaboração do DSM, que, quase a partir do nada, cria e extingue moléstias que movimentam bilhões de dólares.
Não é, porém, a questão econômica que me interessa aqui, mas a filosófica. Se há um ponto em que defensores e críticos do DSM-5 concordam, é que o novo manual, na hora de descrever os transtornos, segue recorrendo mais a sintomas subjetivos do que a marcadores biológicos, no que representa um revés para aqueles que advogam pela unificação da psiquiatria com a neurologia.
Para esse grupo, não há distinção entre mente e cérebro. A toda patologia correspondem alterações anatômicas ou eletroquímicas no encéfalo. O que temos de fazer é identificá-las e encontrar um meio de atuar sobre elas, providenciando assim a cura.
Nem todos concordam. Há correntes que enfatizam os aspectos não orgânicos das doenças, em especial fatores sociais e culturais. É certo que a esquizofrenia tem bases genéticas, mas o ambiente familiar em que vive o paciente define o impacto que a moléstia terá em sua vida. Garante-se aí espaço para a psiquiatria e a psicologia clínica, com seus subjetivismos e discurso por vezes metafísico.
Ao menos no atual estágio da medicina, em que o conhecimento do cérebro só engatinha, é difícil descartar as objeções de psiquiatras e psicólogos à unificação. Mas essa é uma consideração prática que não afeta a questão de princípio: a mente humana é idêntica ao cérebro ou encerra algo mais? Até prova em contrário, fico com a primeira hipótese. Descartá-la significaria jogar fora o paradigma materialista que está na base de todas as conquistas científicas dos últimos 200 anos.
helio@uol.com.br
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Escrito originalmente em São Paulo, 26 de Maio de 2013, e publicado no meu blog Liberal Space. Transcrito aqui, com pequenas modificações linguísticas (não substantivas), em Salto, 3 de Março de 2018.