Primeiro, um preâmbulo.
Este artigo foi escrito e publicado no meu blog Liberal Space em Campinas no dia 30 de Agosto de 2008. A publicação se deu às 15h45. Foi o último artigo que escrevi em meus blogs a partir de Campinas. Naquela noite parti para Redmond, WA, nos EUA, a sede da Microsoft, onde cheguei no dia 31. No dia seguinte, dia primeiro de Setembro, comemorei, com ele, o aniversário de meu grande amigo Les Fotos (com quem, em Maio, havia feito uma excursão de três dias pela Baía de Ha-long no Vietnã, depois de um encontro de vários dias em Hanoi, também patrocinado pela Microsoft). Quanto voltei dos Estados Unidos, tendo saído no dia 5 de Setembro e chegado no dia seguinte, 6 de Setembro de 2008, em São Paulo, não fui mais residir em Campinas. Fiquei em São Paulo — mudando não só de cidade, mas, drasticamente, de vida.
Minha convivência diária com a Paloma começou naquele dia, 6 de Setembro de 2008, véspera do meu aniversário de 65 anos. O dia 6, e, para ela, também e especialmente, a noite do dia 5, foram extremamente conturbados, para ela e para mim.
Com diziam Viktor Frankl e Stephen Covey, o ser humano não se define e caracteriza pelo que acontece com ele, fora e além de seu controle: o que o define e caracteriza é a como ele age em resposta àquilo que lhe acontece. Entre o estímulo e a resposta há sempre um momento de livre arbítrio, de tomada de uma decisão livre. Às vezes o tempo para tomá-la é mínimo — mas o que nos define e caracteriza é a capacidade de não ser meros frutos ou vítimas do ambiente e das circunstâncias, mas nossa capacidade de agir em e com liberdade mesmo em circunstâncias as mais adversas, construídas por fatores causais impessoais ou pela ação intencional de outras pessoas.
Para nós dois, a ideia de abandonar as vidas pessoais que tínhamos e passar a viver juntos, vinha amadurecendo há tempo, mas a gente não queria fazer a coisa de forma precipitada e atropelada. No entanto, da noite do dia 5 até a manhã do dia 6, enquanto eu estava no avião de volta, decisões de terceiros foram tomadas, visando a nos colocar diante do que se imaginava ser um cheque-mate, que nos obrigaram a tomar a decisão de viver juntos antes de estarmos totalmente preparados e antes de nossos filhos estarem prontos para enfrentar essa decisão. No meu caso, foi a mais rápida que tomei na vida, quando ela se tornou necessária: não hesitei por uma fração de segundo. Não me arrependi dela por nem sequer um minuto. Eu sentia que minha vida não tinha sentido e que eu caminhava para o fim sem que ela adquirisse sentido. A Paloma teve um pouco de mais tempo e algum apoio de uma amiga e irmã nossa, mas a decisão também veio na hora certa. Nossa vida pessoal e nossa vida juntos adquiriu, ao longo dos anos que se seguiram desde então (e que chegarão a dez dentro meio ano), um sentido e uma plenitude que nunca havíamos experimentado antes, Naquela hora eu concluí que, nem que fosse apenas por três meses, valeria a pena. Este ano, como disse, daqui a quase exatamente seis meses, fará dez anos. O artigo reflete as graves decisões que a Paloma e eu tomamos ali naquele dia 6 de Setembro de 2008. Naquele dia a nossa vida mudou e nós dois passamos a viver uma experiência única de amor compartilhado.
Vamos ao artigo de 30 de Agosto de 2008.
. o O o .
Fazia tempo que estava procurando duas passagens de Popper que tratam da questão que dá título a este post. Custei a achar. Mas hoje, finalmente, as achei.
A primeira é uma passagem do ensaio “Emancipation through Knowledge” [Emancipação Através do Conhecimento], publicado no livro no livro In Search of a Better World [Em Busca de um Mundo Melhor], de Karl Popper (Routledge, London, 1992). O ensaio trata, entre outras coisas, das expressões “O Sentido da Vida” e “O Sentido da História”.
Diz Popper (tradução minha do Inglês):
“O termo ‘sentido’ sofre de uma importante ambiguidade, em ambas as expressões. A expressão ‘sentido da vida’ é algumas vezes usada para sugerir que a vida humana tem um sentido, frequentemente obscuro, ou mesmo oculto, certamente profundo, que nos caberia descobrir. Mas a expressão pode também ser entendida de forma diferente. Neste entendimento, o sentido da vida não é algo profundo, abaixo da superfície, obscuro ou oculto, e que nos cabe descobrir, mas, é, isto sim, um sentido com o qual nós mesmos dotamos a nossa vida. Podemos dotar a nossa vida de significado através de nosso trabalho, de nossa conduta, do nosso jeito de encarar e viver a vida, das atitudes que adotamos em relação aos nossos amigos, aos que nos estão próximos, ao mundo inteiro. . . . Assim, a busca pelo sentido da vida não é uma busca por algo que está lá, independente de nós, mas, sim, uma busca por uma forma de vida que seja capaz de dotar a nossa vida de sentido e significado.” (pp.138-139).
A segunda passagem, que considero ainda mais importante, é uma passagem do ensaio “How I See Philosophy” [Como eu Vejo a Filosofia], publicado no mesmo livro In Search of a Better World. O ensaio tem o curioso sub-título de “Stolen from Fritz Waismann and from one of the first men to land on the Moon” [“Roubado de Fritz Waismann e de um dos primeiros homens a pousar na Lua”].
Eis a parte final do ensaio de Popper, novamente traduzida do Inglês por mim:
“Talvez os leitores permitam que eu termine este ensaio com algumas considerações filosóficas de teor claramente não-acadêmico.
Atribui-se a um dos astronautas envolvidos na primeira visita à Lua a afirmação, simples e sábia, que eu cito de memória: ‘Vi alguns planetas durante a minha vida, mas fico com a Terra, qualquer que seja a alternativa’.
Acredito que essa afirmação reflita não só profunda sabedoria, mas sabedoria profundamente filosófica.
Não sabemos como é que viemos parar e viver neste lindo pequeno planeta. Nem por que é que existe aqui algo como a vida, que permite que esse planeja seja considerado tão lindo. Mas aqui estamos. E temos motivo de sobra para nos perguntar por quê – mas também para sermos gratos pelo fato de que, qualquer que seja a razão, estamos aqui.
O fato de estarmos aqui e de sermos capazes de fazer essas perguntas talvez seja a coisa mais próxima de um milagre a que jamais cheguemos.
Pois tudo o que a ciência nos pode dizer é que o universo é quase vazio de matéria. E que, onde há matéria, ela está, em sua maior parte, em um estado caótico, turbulento, inabitável, invivível. Pode ser que haja outros planetas em que a vida floresça. Contudo, se pegarmos aleatoriamente um lugar qualquer no universo, a probabilidade (calculada com base na nosso dúbio conhecimento atual da cosmologia) é zero, ou muito próxima de zero, de que encontremos ali alguma forma de vida.
A vida, portanto, tem valor por ser algo extremamente raro. Esse valor se torna incrivelmente precioso quando nos damos conta de que a vida não só é rara no universo, mas também é altamente precária: podemos perder essa coisa rara e preciosa a qualquer momento.
Em geral nos esquecemos disso, e tratamos a vida, até mesmo a nossa, como algo extremamente comum e barato – talvez porque nunca pensemos sobre o assunto. Ou, talvez, porque nesta linda Terra em que nos foi dado habitar exista vida em demasia…
Todos os seres humanos são filósofos, porque, de uma forma ou de outra, cada um de nós assume uma atitude particular para com a vida e a morte. Há aqueles que pensam que a vida não tem valor porque, afinal, ela tem fim… Não percebem que um argumento semelhante pode ser construído com o sinal oposto: se fôssemos imortais, se a vida fosse indestrutível, se ela não tivesse fim, ela não teria valor… É, em grande medida, o fato de que nós, a qualquer momento, podemos perdê-la, e de que certamente a perderemos, definitivamente, um dia, que nos faz perceber quão valiosa a vida é.”
Seria terrível presunção minha acrescentar qualquer coisa a essa segunda passagem. Esta talvez seja uma das passagens filosóficas mais belas e significativas que ja li em quase 65 anos de vida.
Mas vou tentar, e, juntando as duas passagens, concluo o seguinte.
Cabe a cada um de nós dotar a sua vida de sentido e significado. Ninguém fará isso por nós. Esta é a lição importante da primeira passagem. A lição da segunda é que é importante fazer isso porque nossa vida é preciosa e rara – e extremamente frágil e precária: em um segundo ela pode acabar. Mesmo que nada trágico aconteça, cada dia dia que passa é um dia menos que temos para viver. Ou damos sentido à nossa vida – ou ela é um grande desperdício de um recurso precioso — raro e frágil, e, por isso, tão valioso.
As ênfases foram acrescentadas por mim aos textos de Popper.
Originalmente escrito e publicado em Campinas, 30 de Agosto de 2008; transcrito aqui, com o preâmbulo explicativo, em Salto, 3 de Março de 2018. Pequenas revisões estilísticas feitas em 26 de Julho de 2019 e em 14 de Junho de 2021.
[…] “O Sentido da Vida”, no blog Karl Popper Space, em 3.3.2018, no endereço: https://karlpopper.space/2018/03/03/o-sentido-da-vida/ […]
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