A Verdade Entre a Dúvida e a Certeza

[Mais um artigo velho que é relevante a Popper. Eu o escrevi e publiquei no meu blog Liberal Space em São Paulo, 18 de Novembro de 2009.]

Encontrei um twit no FaceBook hoje [18/11/2009], já devidamente retuitado, aparentemente mais de uma vez, que me fez querer voltar a um tema sobre o qual já escrevi bastante aqui. O twit contém a seguinte frase de André Gide, em Inglês:

Believe those who are seeking the truth; doubt those who find it.
(“Acredite nos que buscam a verdade; duvide dos que a encontram”).

A frase original, segundo me informa a WikiPedia, é: “Croyez ceux qui cherchent la vérité, doutez de ceux qui la trouvent”, e foi retirada do livro Ainsi Soit-il ou Les Jeux Sont Faits (André Gide, éd. Gallimard, Paris, 1952, p. 174) — título que pode ser traduzido mais ou menos livremente como Assim Seja ou A Sorte Está Lançada.

Gosto de frases assim, porque elas parecem sugerir que procurar a verdade é mais meritório do que encontrá-la, que parece análoga a outra frase de que gosto, que afirma que a felicidade está no caminhar, mais do que no chegar ao destino…

Mas, confesso que, nessa questão, fico meio dividido em meio às idéias de três filósofos (todos já falecidos) que admiro muito: David Hume, Karl Popper e Ayn Rand.

No caso do primeiro e mais antigo desses filósofos, David Hume (1711-1776), admiro muito a pessoa e as idéias. No caso dos outros dois, admiro mais as idéias do que as pessoas.

Karl Popper (1902-1994) provavelmente endossaria a frase de André Gide, sem tirar nem pôr. Foi ele que, em sua obra, defendeu aqueles que são humildes buscadores da verdade e criticou aqueles – os arrogantes – que se julgavam seus orgulhosos possuidores.

Que Popper, como pessoa, se comportasse como um orgulhoso possuidor da verdade, que não admitia a contestação nem de seus inimigos nem de seus discípulos, para mim não importa: aquilo que me interessa, no caso dele, são suas idéias, não sua biografia.

O que sobremaneira me interessa nas idéias de Popper é o seu falibilismo epistemológico. Exceto na lógica (incluindo a matemática), onde a verdade é plenamente encontrável porque, na realidade, a lógica define as regras do jogo racional, nossos julgamentos, pontos de vista, hipóteses, teorias, etc. devem, segundo ele, poder ser sempre falsificadas ou refutadas pela realidade. Se nossos julgamentos, etc. não forem falsificáveis ou refutáveis pela realidade, não dirão nada, não proibirão nenhum estado de coisas, serão vazios de conteúdo, totalmente vácuos – isto é, serão totalmente fajutos. Em outras palavras: a infalsificabilidade ou irrefutabilidade de nossos julgamentos, etc., longe de ser um mérito deles, é, para eles, um defeito epistemológico insanável – um pecado mortal no plano da epistemologia.

Essa tese me fascina – porque ela me permite voltar a fazer contato com as idéias do filósofo que, dentre todos, mais me fascina, como filósofo e como pessoa: David Hume, sobre cujas idéias escrevi minha tese de doutoramento em 1970-1972 (defesa: 8 de Agosto de 1972, University of Pittsburgh). As idéias de Hume eram céticas – e ele, como pessoa, se comportava com a humildade intelectual que um cético deve ter (afinal, ele afirma não saber nada – vai se orgulhar de quê?) e Popper diz ser essencial nos eternos buscadores da verdade.

Hume, porém, se considerava um cético mitigado, não radical – porque ele achava que a natureza humana era muito bem feita. Apesar de sermos capazes de conquistas racionais maravilhosas, somos, em última instância, movidos pelas emoções – pelas paixões violentas que movem alguns, ou, como ele preferia, pelos sentimentos brandos e calmos que devem mover os que humildemente buscam a verdade sem nunca encontrá-la. Segundo ele, a natureza colocou em nós (pelo menos na maioria de nós) uma tendência a nos inclinar para o bem e para o certo… Assim, nos comportamos da maneira certa, a maior parte do tempo, mesmo que tenhamos dúvidas racionais sobre se aquele comportamento é, de fato, correto — ou o mais certo… Sabemos, por exemplo, dizia ele, que a lei empírica que afirma que “se saltarmos da janela do terceiro andar de um prédio, vamos nos esborrachar lá embaixo” pode ser falsa, porque é, em princípio, falsificável, refutável e desmentível pelos fatos, não sendo, portanto, necessariamente verdadeira. Mas nossa natureza humana é feita de tal forma que ninguém salta do terceiro andar confiando apenas na falsificabilidade ou refutabilidade da “lei”…

Assim, Hume é um cético que mantém a humildade dos buscadores da verdade que acreditam que nunca vão encontrá-la, daqueles que socraticamente afirmam saber que nada sabem, Mas, no fundo, ele se comporta como se houvesse coisas que ele sabe – e que ele, de alguma forma, sabe que sabe… Isso introduz uma contradição em sua obra? Creio que sim. Mas é admirável que ele a tenha admitido, tendo, conscientemente, se recusadoa se livrar dela.

Em uma passagem de seu primeiro livro, A Treatise of Human Nature, que ele escreveu quando estava na casa dos vinte anos, ele, depois de demonstrar que é impossível acreditar na existência de um mundo exterior fora de nossa mente, acrescentou algo assim (cito de memória): “Depois de escrever o que escrevi nos parágrafos anteriores saí para jantar com meus amigos. Comemos, bebemos, rimos, e, ao final, jogamos umas boas partidas de gamão. Ao voltar para casa, reli o que havia escrito — e aquilo pareceu tão absurdo que resolvi rever minhas premissas e meus raciocínios. Não encontrei falha nem em umas nem nos outros. Por isso coloco esta nota: se alguém descobriu onde é que errei, se adotei alguma premissa falsa ou usei algum argumento inválido, por favor, me informe.” (Repito: a citação é livre, mas ela está no livro.)

Popper chegou a afirmar, peremptoriamente, que a verdade existe e que é possível encontrá-la – mas em seguida qualificou sua afirmação dizendo que, no entanto, nunca teremos razão bastante para afirmar que a encontramos…

Como Popper, Ayn Rand (1905-1982) não era humilde, como pessoa. Longe disso. Brigou com todo o mundo, excomungou discípulos que discordaram dela. Seu herdeiro intelectual só obteve o posto às custas de total servilismo intelectual e pessoal. Como Popper, suas idéias também apontam para a postura de quem busca a verdade. Mas diferentemente de Popper, ela acreditava (do ponto de vista epistemológico) ser perfeitamente possível encontrar ou alcançar a verdade. Na realidade, ela não tinha a menor dúvida de que a havia encontrado… Sua busca da verdade, portanto, não era humilde… não era uma busca de quem sabe que não vai encontra-la (como Hume), nem mesmo uma busca de quem temia que, se a encontrasse, não iria reconhecê-la como tal (como Popper). Epistemologicamente, ela era mais otimista do que Popper – e infinitamente mais otimista do que Hume…

Ou seja, em Ayn Rand temos, na pessoa, o orgulho de quem encontrou a verdade – e, portanto, não precisa mais busca-la. Segundo Gide, isso nos deveria fazer duvidar dela. Na obra de Ayn Rand ela procura nos mostrar por que estaria justificada em afirmar que havia encontrado a verdade. Tendo a concordar que ela está certa em tanta coisa, mas…

Com Popper e com Rand, e contra Hume, estou convicto de que a verdade existe e de que é possível aceder a ela. Mas, como disse, fico meio dividido entre, de um lado, a tese popperiana de que, mesmo que a verdade exista e seja encontrável, nunca poderemos ter certeza de tê-la encontrado, e, de outro lado, a tese randiana de que a verdade existe, é encontrável, e é possível ter certeza de que a encontramos (embora a justificativa dessa certeza seja extremamente complexa do ponto de visto filosófico).

Fico dividido, humeanamente, no meio: humildemente buscando a verdade, ao mesmo tempo duvidando, intelectualmente, de todas as verdades, mas com uma tendência forte a acreditar que algumas aspirantes à verdade estão bem mais próximas dela do que outras… A questão que não consegui resolver ainda é se essa tendência é, como afirmava Hume, simplesmente uma característica não-racional de minha natureza humana, ou se ela é racional, como pretende Rand – pelo menos em parte….

Talvez seja por isso que, mesmo quando julgo ter encontrado a verdade, procuro não ser arrogante – porque, quem sabe, eu estou errado e aquela besta arrogante ali do lado pode estar certa.

Se o relato da coisa ficou meio confuso, talvez seja porque a coisa seja confusa em si, não havendo como desconfundi-la sem distorcer a realidade…

Escrito originalmente em São Paulo, 18 de Novembro de 2009, e transcrito aqui em Salto, 3 de Março de 2018

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